Paisagem Americana

Manuel Valente Alves

Charles Sheeler (1883-1965)
American Landscape
1930
Óleo sobre tela
MoMA – Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

Em finais de 2003, quando viajava de carro de Nova Iorque para Chicago, num entardecer, quase ao crepúsculo, depois de atravessar uma longa planície de cores verdes e amarelas, deparei-me com uma paisagem inesperada: um imenso complexo fabril, envolto em fumo branco e azul, pulsava à beira-rio. Era um pulsar estranho aquele. Parei na margem oposta e, durante algum tempo, fiquei a olhar em silêncio aquela assombrosa «máquina». Várias construções horizontais, pontuadas por chaminés verticais, ocupavam literalmente o espaço visual. Não havia árvores, nem pessoas, só aquele complexo fabril, ainda vivo mas agonizante, em acelerada degradação, com as estruturas metálicas corroídas pela ferrugem e o betão escurecido pelo tempo. No céu não se distinguiam as nuvens do fumo das fábricas. As luzes, umas tremeluziam e desapareciam, obliteradas pelo fumo, outras projectavam-se sobre resíduos amontoados em redor da fábrica. O rio, conspurcado, reflectia este cenário dantesco.

Ali, naquele não-lugar da próspera América, tive a clara sensação de estar perante uma paisagem que configura um mundo em crise. E lembrei-me de uma outra paisagem, que poderia ser esta, mas no começo, ainda com o lustro das coisas novas: American Landscape, a enigmática pintura aqui reproduzida, pertencente à colecção do Moma – Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. O seu autor é Charles Sheeler (1883-1965), fotógrafo e pintor norteamericano, que a criou precisamente em 1930, numa altura em que a América estava a viver um dos piores momentos da sua história: a Grande Recessão. Esta imagem é como que um sonho, mais tarde transformado no pesadelo: a impossibilidade de compatibilizar o crescimento com a sustentabilidade do emprego e do ambiente. Sheeler defendia uma estética «clean» e «hard-edged» que reflectisse a nova era da máquina, dos baixos custos proporcionados pela mecanização do trabalho, da emergência da sociedade de consumo, O estilo transparente, quase fotográfico (a pintura é feita a partir de um detalhe fotográfico) da pintura de Sheeler, embora optimista (o ambiente é limpo, disciplinado, respira-se ordem, rigor, organização), reflecte um modelo de crescimento que, percebemo-lo agora, não é sustentável. Mas o que primeiro agarrou o meu olhar neste quadro foi a minúscula figura humana a caminhar nos carris. Que faz ali aquele ser? Terá um lugar naquela gigantesca máquina de produção? Ou será apenas uma qualquer «ovelha» tresmalhada, perdida? Andará à procura de algo? Um emprego? Ou acabou de ser despedido? Esta pintura, que poderia ser uma mera ilustração, não é, porque o artista a transformou num enigma através de um pequeno detalhe, a figurinha. Ela interroga-nos, obriga-nos a reflectir sobre a humana condição, sobre o papel do homem num mundo de máquinas. Frente a a um cenário destes, a ideia de um progresso incessante, a euforia tecnológica, a crença num futuro melhor baseado no crescimento económico, coloca-nos sérias dúvidas. Porque percebemos que o humano é, neste contexto, apenas uma minúscula peça facilmente descartável.

A Grande Depressão, considerada por muitos economistas a «mãe de todas as crises», surgiu em 1929 com o crash de uma das mais dinâmicas bolsas de valores, a bolsa de Nova Iorque. O crescimento será retomado em 1933, mas a onda de choque propagar-se-á a outros países, os mais desenvolvidos economicamente, criando uma gigantesca espiral recessiva com consequências nefastas para muitas economias ocidentais, que estavam a braços com o problema das reparações de guerra exigidas aos vencidos, como foi o caso da Alemanha. Nos Estados Unidos a crise foi ultrapassada graças a um plano de reformas baseado nas teorias deJohn Maynard Keynes, o New Deal, patrocinado pelo presidente americano Franklin Roosevelt. O principal objectivo do plano era combater o desemprego, que afectava cerca de um quarto da população do país. Keynes defendia que o Estado devia intervir energicamente na economia, através de estratégias de investimento público e da reposição dos níveis de consumo e reforma do mercado laboral, reduzindo a semana de trabalho para 40 horas, para aumentar o emprego, e permitindo a formação de sindicatos. No entanto, o problema das indemnizações de guerra, que colocava vencedores de um lado e vencidos do outro, tinha definitivamente humilhado a Alemanha e envenenado as relações internacionais. Por isso, o New Deal (que constitui, talvez, a primeira grande reforma do capitalismo), apesar de ter resolvido a crise nos Estados Unidos, não impediu a II Guerra Mundial, que reduziu a Europa a escombros. No final da guerra, a decisão dos Estados Unidos apoiarem a reconstrução europeia, através do plano Marshall, tinha como principais objectivos, por um lado impedir a aproximação da Alemanha ao bolchevismo, por outro criar um novo mercado que permitisse o escoamento dos excedentes da produção industrial americana. Uma nova relação de confiança se começa a estabelecer na Europa, que permitiu a criação da Comunidade Económica Europeia, que está na génese da União Europeia.

Durante três décadas a Europa irá viver um período de grande prosperidade (os chamados «trinta gloriosos anos»), em parte graças ao plano Marshall e à adopção de medidas eficazes de sustentação social. O sonho termina no início da década de 1970, com o primeiro grande choque petrolífero. Uma nova crise começa então a desenhar-se. O mercado agita-se, os preços aumentam, o crescimento deixa de ser sustentável, o Estado-social começa a ser posto em causa. A Grã-Bretanha na década 1980 é um dos países que se mostra mais preocupado com a situação. A primeira-minista Margaret Thatcher resolve então testar um novo modelo de crescimento, baseado nas políticas monetaristas defendidas pelo Nobel da economia Milton Friedman (mercado livre e redução do papel do Estado, cuja principal função deveria ser simplesmente assegurar a estabilidade monetária). O seu impacto no crescimento económico revelar-se-ia positivo mas com funestas consequências no plano social. A replicação deste modelo (designado por liberalismo económico) noutros países, como nos Estados Unidos, mesmo que travestido por terceiras-vias, irá precipitar em 2007 uma grave crise financeira, a subprime americana e, no ano seguinte, a derrocada do gigante Lehman Brothers. Quase de seguida estala a actual crise na zona euro, uma crise económica do sector público, as chamadas «dívidas soberanas», sem fim á vista, que ameaça contaminar o mundo inteiro.

O conceito de crise tem uma longa história que começa na prática judicial, se estende à metafísica, floresce no seio da medicina hipocrática e galénica, e depois se aplica à política e à economia. No quadro da medicina, crise significa originalmente um ponto de viragem, o momento em que se vislumbra uma saída para a doença. Hipócrates (séculos V-IV a. C.) chamava crise a toda e qualquer «mudança súbita que acontece nas doenças, seja para melhor, seja para pior». Galeno (século II), no tratado Sobre as crises, mais do que definir a crise, procura dar um prognóstico, isto é, reflectir sobre o que irá acontecer ao doente depois da crise, porque quando esta não se trata localmente surgem recidivas globais. As políticas monetaristas de Friedman olham para a doença mas não prestam atenção ao doente, impedindo a crise de se completar. Talvez ingenuamente tentam quantificar tudo, incluindo aquilo que não é quantificável, como o bem e o mal, não percebendo que o problema das crises, independentemente de serem boas ou más, são, como explica Galeno, as recidivas (no corpo humano e no corpo social), e estas dependem da robustez do doente antes da crise.

Não é impossível que esta forma de capitalismo (global depois da queda do muro de Berlim) sobreviva à actual crise. Mas tal só se verificará se abandonar a lógica do crescimento acelerado, tornando-se mais sustentável na defesa do emprego, da saúde, da educação e do ambiente. Mas uma mudança dessas, se ocorrer, não é uma reforma, é uma revolução, algo a que o código genético do capitalismo é avesso. Na rampa descendente em que nos encontramos, com a velocidade da queda a aumentar vertiginosamente, só nos resta esperar que uma milagrosa almofada nos salve do embate. No filme La Haine (1995) de Mathieu Kassovitz, uma expressão inicial estabelecia um programa para todo o filme: um homem caía de uma grande altura e enquanto caía repetia para si mesmo: «até aqui tudo bem».