Retrato de uma Mulher

Manuel Valente Alves

Leonardo da Vinci (1452-1519)
Retrato de uma Mulher (“La Belle Ferronière”)
Cerca de 1493-4
Óleo sobre madeira
Museu do Louvre, Paris

A obra que escolhi para iniciar estas minhas crónicas é uma das pinturas mais fascinantes da arte ocidental, porque condensa numa só imagem uma série de aspectos que revolucionaram os modos de ver e imaginar o mundo há mais de cinco séculos: novas formas de representação do belo e do sublime, o uso sistemático da matemática e da geometria na arte, a utilização da perspectiva e da teoria da arte para criar a ilusão de realidade, a afirmação do primado da subjectividade do olhar. Arte e ciência entrelaçam-se aqui maravilhosamente, apesar de, na época em que foi criada (o Renascimento) a noção de ciência, tal como hoje a concebemos, não fizesse ainda sentido. Um objecto anatómico, por exemplo, revestia-se de aspectos funcionais ou fisiológicos mas também de aspectos filosóficos ligados à alma, à transcendência da natureza e do universo. A ciência confundia-se assim com a filosofia e o conhecimento do mundo natural.

Vi pela última vez ao vivo este Retrato de uma Mulher em Dezembro de 2011 na National Gallery em Londres no contexto da magnífica exposição Leonardo da Vinci – Painter at the court of Milan, depois de passar duas horas de uma manhã gélida de Inverno para comprar o bilhete de ingresso. Retenho a emoção que tive quando depois de passear por entre algumas das obras-primas da pintura de Leonardo, fiquei como que suspenso frente a este quadro, e ali permaneci durante muito tempo. Já o tinha visto no Louvre (a cuja colecção pertence) várias vezes, mas na National Gallery a experiência foi outra, quase iniciática. Aqui a imagem ficou como que gravada na minha memória e ainda hoje me recordo, sem me socorrer do catálogo, de todos os detalhes e da emoção que senti frente a este quadro.

A luz que irradia do rosto desta mulher e o abismo do seu olhar são uma mistura única que combina o belo e o sublime, a razão e a emoção. A Belle Ferronière, assim se intitula, retrata provavelmente Lucrezia Crivelli, a famosa amante de Ludovico, duque de Milão, que Leonardo transformou num ideal de beleza. E de mistério. Com efeito, uma mancha de infinito alastra pela evidência deste corpo, um abismo sem-fundo que a beleza extrema quase sempre convoca. Com esta pintura, datada de cerca de 1493-1494, Leonardo demonstra a superioridade da pintura no todo das artes visuais, a sua autonomia face à representação ou ao objecto representado. A presença encantatória deste quadro convoca o mundo nas suas dimensões estéticas e éticas, dando-os uma percepção mais sensível do sentido da vida, dos valores da perenidade e da efemeridade associados ao humano. O claro e o escuro e as suas subtis graduações, a riqueza dos detalhes (nunca supérfluos), o realismo e ao mesmo tempo idealismo da imagem, fazem ressaltar a singularidade e a universalidade desta bela e enigmática figura de mulher, símbolo do desejo e da paixão, mas também do amor e do temor, da divina humanidade que se inscreve na geometria do corpo. Como referia em 1509 Luca Pacioli no seu tratado De divina proportione, ilustrado por Leonardo, «a matemática constitui a medida e o teste de todas… as ciências e disciplinas».

A sensualidade do rosto e do busto, por exemplo, são realçados por adereços, como o colar que atravessa a fronte desenhando uma linha horizontal que divide o espaço em duas partes: a de cima, dirigida ao céu, ao infinito; a de baixo, em direcção à profundidade do corpo, a alma. No centro desta linha, encontra-se uma aplicação que desenha uma espécie de punctum (expressão utilizada pelo filósofo francês Roland Barthes no seu livro de 1980 La chambre claire para identificar, numa fotografia, o primeiro ponto para onde conflui o olhar), lugar geométrico da sedução, a partir do qual se organiza a composição do quadro.

Leonardo, além de ter estudado a expressão física das emoções, dissecou ao longo de toda a sua vida em diversos locais e no Hospital de Santa Maria della Consolazione, em Roma, o que lhe valeu acusações de heresia. A elaborada construção do presente retrato não seria possível sem o profundo conhecimento que Leonardo possuía, quer da fisiognomia quer da anatomia, como o demonstra os inúmeros esquissos preparatórios.

Gostaria de fazer uma breve referência ao importante lugar que Leonardo conquistou na história da medicina, responsável que é pelo nascimento da moderna cultura visual da medicina. Com efeito, as páginas e páginas de desenhos anatómicos que realizou ao longo da sua vida, muitos delas com profusas anotações que complementam a informação visual, nesse tempo uma novidade do ponto de vista formal, com um rigor e um despojamento científicos a todos os títulos assinalável, longe das imagens esquemáticas medievais que procuravam representar o interior do corpo e à margem das alegorias e imaginários poéticos ou outros modos que povoavam os tratados anatómicos da época. Não havia nesses desenhos de Leonardo, apesar de irredutivelmente belos, nenhum desejo de arte, nenhum artifício: eram puras ilustrações científicas. Contudo, esses estudos, actualmente pertença da colecção do Castelo de Windsor, apesar de se destinarem a uma tratado de anatomia da autoria do próprio Leonardo, não foram sistematizados e só muito recentemente foram publicados. Atrevo-me a pensar que tal aconteceu, em boa parte, porque a ciência médica não via com bons olhos a interferência de estranhos ao seu próprio campo do saber. Provavelmente foi essa a principal razão pela qual a obra de Leonardo infelizmente teve escassa ou mesmo nula divulgação no meio médico, acabando por interessar mais à arte do que à ciência médica. Ganhou a arte, indubitavelmente, mas perdeu a medicina.

O quadro La Belle Ferronière também evoca, no seu aparente esmero realista, a janela renascentista, um dispositivo de construção das imagens que, apesar da sua artificialidade, ainda hoje nos faz crer que o que ali está representado reproduz o olhar, um olhar rigoroso, científico, despido de subjectividades. Este quadro igualmente mostra (e demonstra) que a pintura, além de cosa mentale é também «coisa técnica», depende do pensar e do fazer em simultâneo, contribuindo assim para revalorizar as artes manuais na altura pouco valorizadas (mesmo na medicina as artes manuais eram desvalorizadas: veja-se o caso dos cirurgiões).

Olhando longamente esta pintura percebe-se bem o que é a imensidão do olhar, a imensidão dos olhos que nos olham nos olhos, do abismo que a beleza de um corpo pode guardar (e enfermar). Deste rosto iluminado transparece também a infinita fragilidade da alma humana, o poder da beleza corpórea, a paixão que tudo revolve e o amor que tudo redime. Nada disto, como é óbvio, é estranho a um olhar clínico.